A gente vive num mundo que diz que a vida é agora, muito provavelmente porque temos plena noção de que no futuro a vida vai deixar de ser.
A gente vive numa sociedade que está envelhecendo, mas que faz apologia à juventude e à beleza.
A gente está engordando cada vez mais, mas o modelo das roupas é cada vez menor, a ponto de um dia chegarmos a conclusão de que roupa é coisa para poucos. (E andaremos pelados e cheios de celulite?)
A gente fundou o nosso conceito de sucesso em competir, vencer e subjugar o seu semelhante, e ainda temos a cara de pau de dizer que as pessoas deveriam se unir e ter mais atenção umas às outras.
A gente quer que ouçam o que temos a dizer, mas não queremos ouvir o outro.
A gente está aos poucos se enterrando no lixo de nossos desperdícios e luxos, mas fazemos apologia à atualização constante e eterna.
A gente vive em uma realidade repleta de pessoas com destinos miseráveis e infelizes, e ainda agimos como se as causas a serem defendidas se acabaram ao final da ditadura militar.
A gente acha que as pessoas estão perdendo a humanidade e a paciência, mas não temos nem paciência para esperar uma velha senhora, moradora de rua, escolher o que ela vai conseguir levar da estante com seu parco dinheiro em um supermercado, nem humanidade para oferecer ajuda, ou a vida.
A gente sabia o que era ser feliz, e ter uma vida que valeu a pena ser vivida, agora a gente precisa que um especialista qualquer que nem nos conhece o diga para nós.
A gente tinha rituais, fé, crenças. Agora quem dita os nossos rituais são as empresas.
A gente tem toda a informação que se poder conseguir, mas não conseguimos lançar juízo crítico sobre elas.
A gente tinha folklore (conhecimento do povo), agora ele foi transformado em crendice e superstição.
A gente tinha dias e noites, épocas, estações do ano, períodos menstruais, maternidades e celebrávamos isso tudo. Tinhamos dias de descanso e momentos em que nos permitíamos não trabalhar. Agora tudo isso se reduz a um linear "aberto 24 horas por dia, sete dias por semana".
A gente vive para tomar do outro, e não entendemos por que as coisas parecem não ir para frente.
A gente vive como se não tivesse nada de errado, mas o fato é que tem.
A gente até sabe o que tem que fazer, mas o fato é que a gente não faz.
Não dá pra assimilar o sofrimento de um mundo inteiro de uma vez, mas o fato é que estamos sofrendo, e nossas mãos estão sujas.
E não podemos lavá-las.