terça-feira, 24 de julho de 2007

Da realidade.

É engraçado como temos certeza acerca do que as coisas são de fato. Principalmente entre as pessoas da Era da Informação onde para tudo existe uma informação dominante, de forma que para tudo existe um protocolo, de forma que para tudo que existe fora do protocolo, existe uma tendência a reprovar e punir. Se alguma coisa dá errado, mas você seguiu o protocolo, a culpa é da coisa. Se alguma coisa dá errado e você não seguiu, bem... a culpa é sua mesmo. Em todos os níveis pensáveis.

Mas nossas certezas são frágeis, porque para apreender o mundo, nós só temos os nossos sentidos, e os nossos símbolos, e o nosso raciocínio, não muito mais do que isso. Dói dizer, mas eles são limitados. E o preço que a gente paga para ter a ilusão de que há segurança dentro do protocolo, de que todos os tomates serão vermelinhos e terão o mesmo tamanho, de que com certeza absoluta chegaremos em casa sãos e salvos porque todas as possibilidades de algo dar terrivelmente errado estão contempladas, é que a gente coloca à margem a fração da realidade que diz que as coisas estão longe de serem bonitinhas e lineares como as pintamos. É uma fatia ENORME da realidade que a gente discarta para fazermos funcionar a nossa forma de realidade.

Esse jogo também atinge a medicina. Pacientes são ignorados na parte da realidade que não cabe na forma. O que cabe em um protocolo, pelo protocolo é tratado. O que não cabe não existe (ou precisa não existir para que possamos dar credibilidade ao protocolo, afinal de contas já imaginou falar pro estatístico que cada um dos 31% de casos que evoluiu de forma favorável com a medicação o fez de forma absolutamente única?). Esse é o mundo onde a falha está em fugir do protocolo (esquecendo que cada falha se dá de forma absolutamente única pelos motivos já citados).

O fato é que eu vivo em um lugar onde as coisas fogem do protocolo. Um lugar onde o conhecimento estéril e altamente reprodutível e linear se mostra muito difícil de satisfazer. Um lugar onde a quantidade de variáveis que devem ser descartadas em nome do protocolo é, ao meu ver, proibitivo. Essa coisa chamada psiquiatria, em que sabemos razoavelmente bem a quem servir, mas não fazemos a menor idéia de como servir.

As pessoas do meu tempo se pautam pelos protocolos, que por sua vez se pautam por um monte de evidências e outras coisas, que por sua vez se pautam no quão perto de uma certa forma de existir conseguimos colocar o paciente. Esta certa forma inclui se manter calmo, competitivo, produtivo, pró-ativo, independente, etc. Esta por sua vez, se pauta em uma outra forma de existir, que todos deveriam ter, mas ninguém de fato tem. É a forma de existir das pessoas musculosas, saradas, lindas, que acordam com um hálito maravilhoso, maquiadas, com cabelos arrumados, fazem Yoga e vivem, em suma, em estado permanente de graça. Infelizmente, essa forma dura o intervalo comercial.

E eis o material de trabalho do psiquiatra: Um indivíduo que tem por objetivo estar produtivo e sob controle, mas que acha que deveria estar feliz e viver num caminho de flores de comercial de desinfetante, uma visão na qual a pessoa começa num protocolo e subitamente some em um vazio inexplicável e um conjunto de terapias claramente enviesado para a ilusão de que se sabe tudo sobre os indivíduos que eventualmente padecem de alguma doença mental.

Me pergunto se é válido lutar pelo reconhecimento dessa realidade que foge à ilusão de controle, que geralmente se mostra perigosa e imprevisível de se lidar. A experiência mostra que os que se dispõem a lidar com ela saem dela mais fortalecidos da experiência, pois colocam à sua frente uma realidade mais honesta. Me pergunto se é uma causa a se defender, porque as pessoas do meu tempo não se mostram dispostas a sofrer. Tenho medo de me tornar um moralista como meus colegas, pregando o rigoroso oposto exatamente da mesma forma.

Por enquanto, entendamos as regras para podermos quebrá-las de forma responsável em algum momento.

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